terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Letras pra quê?


Discurso do professor Marcos Bagno (UNB) na mesa de abertura do VII EBREL

Vou começar essa conversa com uma afirmação clara e simples: a situação dos nossos cursos de Letras é catastrófica. Qualquer um: seja de universidade pública prestigiada em grande capital, seja de pequena faculdade isolada no sertão, a diferença é pouca. É doloroso ter que admitir isso. É angustiante, para uma pessoa apaixonada pelo estudo da linguagem em todas as suas manifestações, ter de escrever essas palavras: os nossos cursos de Letras são uma catástrofe. Por quê?

Para começar, o próprio nome — Letras — revela um apego a concepções de educação e de formação de cidadãos (no masculino mesmo) que vigoravam no século XIX e que, depois de tantas revoluções ocorridas nas ciências e nas sociedades humanas, não tem mais nenhuma justificação séria para continuar existindo. É deprimente saber que a pessoa que conquistou uma vaga num curso de Letras vai ingressar numa estrutura acadêmica obsoleta, anacrônica, que foi delineada há pelo menos duzentos anos.

O estudo das “Letras” ou das “Belas Letras”, como também se dizia, era regido por ideias e ideais muito elitistas, aristocráticos (além de sexistas, já que as mulheres não estavam incluídas neles), por critérios antiquados de elegância e bom gosto, o que fica evidente já pelo uso do adjetivo “belas”. O que se cultivava e cultuava nas “Belas Letras” era uma literatura clássica, toda composta de autores devidamente mortos e
enterrados: só merecia estudo a “grande” prosa, a “grande” poesia, a “grande” dramaturgia... Literatura oral? Nem pensar! Literatura alternativa, marginal, transgressora? Deus nos livre! Literatura escrita por mulher? Imagine! Desde quando as mulheres escrevem coisa séria?

Literatura de autor vivo? De jeito nenhum: era preciso que ele fosse devidamente “imortalizado” pelas Academias de Letras (que não têm esse nome por acaso, já que também são instituições elitistas, anacrônicas e obsoletas). No que dizia respeito às línguas, o espírito (ou o fantasma?) era o mesmo.

Só eram estudadas as línguas “clássicas” (o latim, o latim e principalmente o latim... o grego, só para os gênios mais ousados), as línguas modernas mais prestigiadas (o francês, o francês e principalmente o francês...) e, no tocante ao português, única e exclusivamente a língua considerada “correta”, “pura” e “elegante”, sempre colhida da obra daqueles mesmos “grandes” escritores. Com isso, o ciclo se fechava sem nenhum atrito nem aperto: “literatura” era só um conjunto seleto de obras que, por sua vez, eram escritas num modelo muito restrito de “língua correta” que, por sua vez, era a única manifestação merecedora do rótulo de “língua portuguesa”.

Daí o nome de “Letras”: só o que era escrito, e escrito por poucos, era objeto de estudo.
A Faculdade de Letras de Paris, por exemplo, oferecia os seguintes cursos quando foi criada, em 1808: Literatura Grega; Eloquência Latina; Poesia Latina; Eloquência Francesa; Poesia Francesa. Precisa de comentários?

No que diz respeito ao estudo do português, é preciso lembrar que a inclusão da língua portuguesa como disciplina curricular (nas escolas e nas faculdades) só ocorreu no Brasil nas últmas décadas do século XIX, já no final do Império. Tratado exclusivamente em sua vertente literária consagrada, o português era estudado com a mesma metodologia empregada para o estudo das línguas mortas: dissecado em frases soltas, por sua vez dissecadas em seus elementos constitutivos que eram devidamente rotulados de acordo com as classificações herdadas da gramática grega e latina.

Tarefas como fazer a análise sintática de estrofes d’Os Lusíadas ou do Hino Nacional Brasileiro eram o padrão. Qualquer semelhança com a autópsia de um cadáver não é mera coincidência! Não espanta o horror que as “aulas de português” provocavam (e ainda provocam) em tanta gente.

Com o surgimento da ciência linguística moderna, no início do século XX, poderíamos imaginar que uma grande revolução abalaria essa arquitetura aristocrática, derrubando os velhos templos beletristas neoclássicos, mofados e insalubres, para, no lugar deles, se erguerem edifícios arejados, iluminados, funcionais, onde a ciência poderia transitar à vontade. Nada disso, porém, aconteceu. A disciplina chamada Linguística só foi incorporada ao currículo oficial dos cursos de Letras no Brasil no ano de 1961. Quando a Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo foi criada, em 1934, um dos formuladores do currículo escreveu que era preciso ensinar português correto aos brasileiros porque falavam muito mal a língua. Está lá, nos registros. E é com esse espírito colonizado que a grande maioria dos nossos cursos de Letras vive até hoje. Basta conversar com alguns docentes mais antigos da UnB para verificar isso.

Os estudos científicos foram sendo incorporados aos cursos de Letras no Brasil de maneira desordenada, sem planejamento curricular adequado, simplesmente com o acréscimo de uma disciplina aqui, outra ali, mais algumas acolá. Não é por outra razão que o nome do curso permaneceu intacto, mesmo com a anexação de disciplinas provenientes de perspectivas científicas mais atualizadas. Se a gente investigar a lista das unidades acadêmicas das grandes universidades brasileiras, vai topar sempre, em todas elas, com alguma coisa do tipo Faculdade de Letras ou Instituto de Letras. Exceção digna de nota é o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e seu caráter excepcional se deve, entre outras coisas, ao ano de sua criação (1976), no âmbito de um projeto universitário inovador para a época. Mesmo assim, o IEL oferece atualmente uma graduação em... Letras!

Em vez de se promover a implosão do curso de Letras, totalmente inadequado para abrigar as novas concepções científicas do século XX, o que se promoveu foram “puxadinhos”, como muitas pessoas costumam fazer em suas casas: para não ter de derrubar um imóvel e reconstruí-lo de maneira a torná-lo adequado aos fins que se deseja para ele, vai se construindo novos cômodos e anexando eles na casa já existente. Assim, os cursos de Letras começaram a se tornar o que são até hoje: verdadeiros Frankensteins acadêmicos.

Muitos dos profissionais que atuam nos cursos de Letras parecem se negar (consciente ou inconscientemente) a admitir que a vocação natural do curso é a formação de docentes de português e/ou de línguas estrangeiras, numa recusa que se contrapõe às diretrizes do próprio Ministério da Educação no que diz respeito à formação docente. Os mestres e doutores que professam nas Letras se comportam como se estivessem ali para formar grandes escritores e críticos literários, ou filólogos e gramáticos do perfil mais tradicional possível. Alguns poucos, bem intencionados, mas iludidos, acreditam que vão formar futuros linguistas, pesquisadores sintonizados com a ciência moderna. Com isso, somos obrigados a ministrar, como professores, e a cursar, como estudantes, disciplinas totalmente irrelevantes para a formação docente e, ao mesmo tempo, deixamos de lado todo um conjunto de teorias e práticas que são de primeiríssima necessidade para que alguém que se forme em “Letras” possa trabalhar em conexão com o que se espera, hoje, de um professor de língua.

Aqui na UnB, por exemplo, muitas das disciplinas de sintaxe são dadas exclusivamente na perspectiva do gerativismo chomskiano, uma teoria linguística que, por mais interessante que seja do ponto de vista filosófico, não tem contribuição nenhuma a dar para alguém que, saindo da universidade, vai ter que enfrentar a prática da sala de aula. A tentativa que se fez, nos anos 1970, de aplicar o gerativismo ao ensino de português foi um estrondoso desastre. Valeria mais a pena usar esse precioso tempo de formação para o estudo aprofundado e crítico da tradição gramatical, que ainda domina com muito vigor o imaginário social acerca de língua e linguagem. O resultado é que as pessoas se formam em Letras sem dominar a teoria gerativa (o que, aliás, é impossível porque seu fundador destrói e reconstrói regularmente a teoria a cada tantos anos...) e sem conhecer a tradição gramatical (o que seria importantíssimo), mas somente um conjunto de afirmações pejorativas a respeito dela, que em nada contribuem para a formação de quem vai ter que lidar com a gramática em sua vida profissional.

Em contrapartida, aqui e em praticamente todos os cursos de Letras, milhares de estudantes saem da universidade sem sequer ter ouvido falar (ou tendo ouvido falar muito vagamente) de gramaticalização, pragmática, discurso, letramento, gênero textual, enunciação, sociocognitivismo, sociointeracionismo, sociologia da linguagem, políticas linguísticas, crioulização, diglossia, teorias da leitura, relações fala/escrita... áreas de pesquisa e de ação fundamentais para que se tenha uma visão coerente do que é uma língua e do que significa ensinar língua.

Para piorar, essas mesmas pessoas também saem acreditando que existe “oração sem sujeito” e “sujeito oculto”, que existe uma “voz passiva sintética”, uma “terceira pessoa do discurso”, uma diferença entre “adjunto adnominal” e “complemento nominal”, acreditando que as palavras porém, todavia, contudo são “conjunções adversativas”, e outros mitos e superstições que nossa tradição gramatical insiste em preservar e que os cursos de Letras não se empenham, como deveriam, em criticar e substituir por conceitos mais afinados com a teorização e com a pesquisa científica contemporâneas. A probabilidade de encontrar um recém-diplomado em Letras que saiba explicar, por exemplo, o que é um fonema sem repetir o erro teórico de que se trata de um “som da língua” é quase a mesma de encontrar uma agulha num palheiro. Mais desastroso ainda é encontrar essa definição completamente equivocada na maioria dos livros didáticos (escritos por pessoas formadas em... Letras).

Na grande maioria dos cursos, o único contato que o estudante tem com a ciência da linguagem e sua história se dá através de uma disciplina chamada “Introdução à Linguística” ou coisa parecida, muitas vezes num único semestre, e que, frequentemente, se interrompe justamente onde deveria
começar: no nascimento da Linguística moderna, inaugurada pelos trabalhos de Ferdinand de Saussure (publicados em 1916...).

Com isso, quando se veem diante da tarefa de escolher uma coleção de livros didáticos de português dentre as que lhe são oferecidas pelo Ministério da Educação, essas pessoas quase sempre optam pelas coleções mais conservadoras, menos desafiadoras, justamente as que recebem as avaliações menos favoráveis da parte dos especialistas encarregados pelo Ministério de analisar as obras didáticas disponíveis no mercado. E como poderia ser diferente se, em sua formação acadêmica, esses professores jamais foram apresentades aos critérios usados pelo MEC para avaliar livros didáticos, se jamais entraram em contato com as teorias de ensino-aprendizagem de língua materna que sustentam hoje em dia as políticas oficiais de educação linguística?

Além desses problemas que têm a ver com a própria estrutura dos cursos de Letras, existem outros, mais amplos e muito mais trágicos. E o mais grave deles se resume na seguinte frase, tirada de uma notícia de jornal: Somente 25% dos brasileiros que têm entre 15 e 64 anos dominam a leitura e a escrita, de acordo com resultados do 5º Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional).

Em qualquer país que tivesse uma história educacional diferente da brasileira, isto é, em qualquer país onde a educação fosse uma verdadeira prioridade nacional, uma notícia como essa teria o efeito de um terremoto de proporções arrasadoras. Mas o que estou dizendo? Em qualquer país onde a educação fosse uma questão nacional de primeira ordem, uma notícia como essa jamais seria publicada! E o pior é que essa notícia se refere aos resultados do Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) em sua edição de 2005. Em 2012, com os novos dados do Inaf, a situação catastrófica descrita permanece inalterada, sete anos depois: 75% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. A notícia foi publicada. Não aconteceu nenhum terremoto e, pelo visto, ninguém se apavorou a ponto de merecer destaque na imprensa. Afinal, a nossa imprensa só se preocupa em mentir e deformar a opinião pública com histórias que ela mesma inventa e transforma em minisséries ou novelas de sucesso.

O quadro absolutamente precário do alfabetismo no conjunto geral da população brasileira se reflete também no conjunto menor do nosso professorado. O desprestígio que vem acompanhando fielmente a profissão docente nas últimas quatro ou cinco décadas — devido à degradação progressiva e permanente das condições de trabalho e aos salários aviltantes — tem levado a uma redução drástica do contingente de pessoas bem formadas, bem letradas e de origem socioeconômica privilegiada (classes médias e médias altas) que querem se dedicar ao ensino básico. Daqueles 25% de brasileiros com nível pleno de alfabetismo, quantos estão hoje em sala de aula de escolas públicas? Abandonados por essas camadas sociais, os cursos superiores voltados para a formação de professores são procurados cada vez mais por pessoas originárias de grupos sociais em que as práticas letradas (leitura e escrita) são muito restritas, quando não são praticamente nulas. É o que podemos ler nesta outra reportagem:

O professor formado pelas universidades brasileiras é filho de pais que nunca foram à escola ou nem sequer completaram os quatro primeiros anos do ensino fundamental. Vive em famílias com renda inferior a R$ 1.800/mês e estudou sempre em escola pública. [...] O questionário socioeconômico do provão de 2001 do Ministério da Educação mostra que os formandos de cursos como pedagogia, letras, matemática, biologia, física e química (os mais procurados pelos que pretendem ser professores) têm perfil distinto dos que saem de cursos mais concorridos, como medicina, ou de oferta mais comum nas faculdades, como direito e administração.

Esses números significam muita coisa. Significam que esses estudantes têm um histórico de letramento muito reduzido: no ambiente familiar, não convivem com a cultura letrada, não têm acesso a livros, revistas, enciclopédias etc., não são falantes das normas urbanas de prestígio (as mesmas que supostamente terão de ensinar a seus futuros alunos) e têm domínio escasso da leitura e da escrita. Só na faculdade é que a maioria dos estudantes de Letras vai ler, talvez pela primeira vez na vida, um romance inteiro ou um texto teórico mais complexo. As pessoas que atuam em nossos cursos superiores de Letras, porém, fazem de conta que esses estudantes são ótimos leitores e redatores e despejam sobre eles, logo no primeiro semestre, teorias sofisticadas, que exigem alto poder de abstração e familiaridade com a reflexão filosófica, junto com textos de literatura clássica, escritos numa língua que para eles é quase estrangeira. E assim vamos nos iludindo e iludindo os estudantes.

O resultado, volto a insistir, é que grande parte dos futuros professores de português saem diplomados sem saber linguística, sem conhecer a tradição gramatical, sem saber teoria e crítica literária e sem conseguir escrever adequadamente um texto de qualquer gênero mais monitorado. Todos os dias, eu recebo mensagens de formandos de vários pontos do país que me pedem sugestões de temas e de leituras para seus trabalhos de conclusão de curso.

Alguns até me enviam seus projetos: são textos repletos de erros primários de ortografia, pontuação, sintaxe, vocabulário, com frases truncadas e desconexas, além de abordagens teóricas pobres, superficiais, quando não distorcidas, reveladoras das grandes dificuldades de leitura e compreensão de textos teóricos mais densos. É assim que essas pessoas chegam ao final do curso, e suas monografias, mal escritas, sem nenhum rigor teórico ou metodológico, são aprovadas alegre e irresponsavelmente por seus (supostos) orientadores. E a coisa prossegue no Mestrado e no Doutorado, onde são aprovadas dissertações e teses que não poderiam servir nem como trabalho de disciplina de graduação.

O problema, é claro, não está no fato de acolhermos na universidade pessoas vindas das camadas mais desfavorecidas da população. Ao contrário, isso tem de ser amplamente comemorado. O problema é não oferecermos a essas pessoas condições de, primeiramente, se familiarizarem com o mundo acadêmico, que é totalmente estranho para elas, por meio de cursos intensivos (e exclusivos) de leitura e produção de textos, de muita leitura e muita produção de textos, para só depois desses (no mínimo) dois anos de preparação elas poderem começar a adentrar o terreno das teorias, das reflexões filosóficas, da literatura consagrada. É urgente a necessidade de letrar os estudantes de Letras que estão entre os menos letrados da universidade! É por isso que as salas de aula do ensino básico estão ocupadas por professoras e professores que, mal sabendo ler e escrever adequadamente, não poderão desempenhar sua principal tarefa: ensinar a ler e a escrever adequadamente!

Eu fiz uma pesquisa sobre como escrevem as professoras e professores de português do Distrito Federal. Coletei centenas de textos escritos por essas pessoas e o que tenho em meus arquivos é uma demonstração concreta de tudo o que falei até agora: mais de 80% de textos incompreensíveis, sem os requisitos mínimos de coesão e coerência, repletos de erros ortográficos, de pontuação, de concordância e por aí vai. Se assim escrevem os docentes, como podemos esperar que seus alunos possam aprender a escrever?

Por isso, aproveito esse momento em que estou falando diretamente aos estudantes de Letras para pedir que vocês se conscientizem de todos esses graves problemas que são, como sempre, problemas de ordem política e que precisam de uma solução política. Organizem-se, reivindiquem seus direitos, exijam uma transformação radical na estrutura mesma do curso, a começar pelo nome, que é uma vergonha para qualquer curso que pretenda ter uma natureza minimamente científica. Exijam que a universidade ensine a vocês o que vocês precisam aprender para atuar em sala de aula. E exijam também condições de trabalho dignas para nossos professores, salários decentes, investimento contínuo e crescente na educação. Não adianta nada o Brasil ser a 7a economia do mundo capitalista e ocupar ao mesmo tempo o posto número 65 no índice de qualidade de educação estabelecido pelas Nações Unidas. Estamos bem atrás da Argentina, do Chile e até mesmo da Bolívia, o país mais pobre da América do Sul.

O Brasil tem avançado muito nos últimos dez anos. Mas esses avanços foram conseguidos a duras penas, por meio de um reformismo social aliado a um pacto conservador. No campo da educação, as coisas estão estagnadas. Há mais de dez anos o índice de alfabetismo funcional não se move: 75% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. E se nós, comprometidos com a educação, não fizermos nada, certamente não será esse pacto conservador que vai fazer. Obrigado.

Um comentário:

  1. É por estas, e por outras, que tenho orgulho em ser um ACADÊMICO na UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. NOSSO CURSO DE LETRAS VAI ALÉM, MUITO ALÉM, DAS "belas letras".

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